Tchalê Figueira é uma criança gigante que pinta “bitchins” e “gongons”. Alguém que colore um livro de histórias sem figuras nem contornos. Labirintos que só perceberemos quando chegamos à idade do entendimento. Tchalê é a criança “terrible” que dialoga com cada personagem da Rua de Praia, que conhece cada criatura do seu Mindelo, que fantasia com todo o feminino do universo. Menino traquinas capaz de pronunciar todas as palavras, de eliminar a ideia do proibido, trazer toda a intimidade da porno-grafia quotidiana e normaliza-la. Mestre de monstros velhíssimos, perversíssimos. Indomáveis. Ele próprio assim.
Em tempos pintou com todas as cores, baralhando os sentidos de quem quer ler. Desestabilizando o concreto e a normalidade de quem apenas aspira a uma arte sem rebelião. Tchalê é o contrário da norma, na linha narrativa da sua geração de artistas em Cabo Verde. Construiu uma grafia e um vocabulário único. Deu ao cabo-verdiano um novo rosto, um corpo em constante mutação. Somos todos “bitchins” e “gongons”, somos todos coloridos e secretos, temos todos a nossa nudez. Em algum momento. A todo o momento. De corpo e de alma. E cheiramos a corpo e a suor. Às vezes fantasiamo-nos e brincamos a todos os carnavais fora de época. Quando amamos, vivemos ou simplesmente andamos pelo universo fora. Num exercício de extrema condensação, de concisa minúcia tem experimentado composições sobre o negro, breves matizes de cor num cosmos sintetizado pelo traço, pela essência da composição como regra da arte, de consciência e da vida.
Para esta exposição Tchalê regressa às cores, em desafio às “Flores do mal” de Baudelaire. Pretexto, por outro lado, para compreender que o imaginário de Tchalê Figueira não cabe apenas na Rua da Praia, na “Morada”, no Mindelo, no arco, na ilha, nas ilhas, no Atlântico. Tchalê é herdeiro de uma tradição universal que vai não só dos pais espirituais da beat generation, por isso de Jack Kerouac, Henry Miller, Norman Mailer, William S. Burroughs, Kenneth Rexroth e da beatnik poetry (Allen Ginsberg, Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Gary Snyder), mas também de Charles Bukowski, Fiódor Dostoiévski, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Júlio Cortazar, Borges, Pessoa, Rainer Maria Rilke, Arménio Vieira e toda a poesia surrealista francesa.
A aparente simplicidade das obras de Tchalê Figueira é a mais apurada denúncia da complexa panóplia de linguagens e influências que compõem o percurso deste que é provavelmente o mais consagrado artista plástico cabo-verdiano da actualidade.